A banalização do desrespeito e do desprezo
O culto dos mortos é, em Timor-Leste, um caso sério. E quase me atrevo a dizer que se respeita mais a memória de um morto do que se respeita um ser humano vivo. Por outro lado, se há sítio onde todos, depois de morrerem, passam a ser bons, é aqui em Timor-Leste. Culto, cerimoniais da morte, choros de transido sofrimento...
Tudo parecia ser assim tão linear, tão certo, tão sentimento...
Pena é que o sofrimento, a dor, o respeito e a educação sejam permeáveis a algumas modas. Que o culto se consuma perante a cobiça de alguns vivos que não olham a meios para alcançar os seus fins. Se não há espaço para sepultamento de novo inquilino do cemitério de Santa Cruz há que o arranjar. O que se faz com a profanação descarada de campas para reutilização.
Há desrespeito, desprezo pelos restos mortais daqueles que, tendo partido há muito tempo, não têm familiares que defendam o direito dos mortos ao descanso em paz.
O Cemitério de Santa Cruz está cheio como um ovo e, nem mesmo existindo mais cemitérios / com excepção do cemitério de Santana - , as pessoas desistem de ali enterrar os seus entes queridos. É verdade que em Santa Cruz se descansa, só que não eternamente...
Quando morre alguém, é uma dor de cabeça para os que transportam o caixão e para os acompanhantes. Acompanhar o morto à sua “última” morada, significa, sem pudor, pisar, saltar por cima das sepulturas existentes. Como já não há espaços vazios, enterra-se o morto na campa de um familiar. E quando não as há de familiares, então vá de profanar os restos mortais de outrem. Os mortos não falam e não podem resistir aos negociantes da morte...
Um dia destes, entrei no cemitério e, num gesto habitual, olhei para o lado esquerdo de quem entra pela porta principal, de frente para a capela, onde havia a sepultura de um velho e solitário senhor a quem valeu na hora da morte – há umas dezenas de anos - um grupo de amigos a prestar-lhe devida homenagem enterrando-o em campa rasa evitando assim que o colocassem numa vala comum. Em lugar da campa rasa em cimento, cor de cinza, há, agora, uma nova, alta, colorida, como aliás é hábito aqui no país. Estranhei. Recordei as palavras de alguém que me afiançara que havia quem fizesse negócio com as campas.
Lembro-me que noutros tempos havia um coveiro que tratava cuidadosamente do cemitério, recordo que havia um ossário. Não sei se continua a existir um lugar onde sejam condignamente colocados os restos dos que perdem o lugar. Ignoro mesmo se haverá hoje alguém a quem nos possamos dirigir para dizer de nossa justiça.
Parece-me urgente que corajosamente se tomem medidas e se encerre o cemitério de Santa Cruz proibindo novos enterros. Se, mesmo por omissão, aceitamos e assistimos impávidos ao acto ultrajante da profanação do cadáver de outro ser humano, estamos também a aceitar que as lágrimas que deitamos pelos que partem não são mais que lágrimas de crocodilo. Pior, aceitamos bem que, um dia mais tarde, e na cíclica renovação de desrespeito, haverá quem faça o mesmo aos nossos mortos, a nós próprios...
E porque já não se sabe onde começa e termina o respeito seja pelo próximo vivo seja pelo morto e a tradição já não é o que era dantes, não haverá flor colocada na “Cruz Bo´ot” que chegue para ajudar no perdão dos nossos pecados...